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POEMAS DE DOMINGO é um projeto independente de declamação de poemas e poesias.

Declamações: Roger Vasconcelos
Realização: Maikon Glasenapp

POEMAS DE DOMINGO POEMAS DE DOMINGO

    • Society & Culture

POEMAS DE DOMINGO é um projeto independente de declamação de poemas e poesias.

Declamações: Roger Vasconcelos
Realização: Maikon Glasenapp

    #16 EU SEI, MAS NÃO DEVIA de MARINA COLASANTI

    #16 EU SEI, MAS NÃO DEVIA de MARINA COLASANTI

    Eu sei, mas não devia, Marina Colasanti



    Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

    A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. 

    E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

    E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

    E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma acender mais cedo a luz.

    E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



    A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

    A tomar café correndo porque está atrasado.

    A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.

    A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

    A sair do trabalho porque já é noite.

    A cochilar no ônibus porque está cansado.

    A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.



    A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

    E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.

    E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.



    A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

    A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

    A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.



    A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.

    E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

    E a ganhar menos do que precisa.

    E a fazer filas para pagar.

    E a pagar mais do que as coisas valem.

    E a saber que cada vez pagará mais.

    E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.



    A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.

    A abrir as revistas e a ver anúncios.

    A ligar a televisão e a ver comerciais.

    A ir ao cinema e engolir publicidade.

    A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.



    A gente se acostuma à poluição.

    As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

    À luz artificial de ligeiro tremor.

    Ao choque que os olhos levam na luz natural.

    Às bactérias da água potável.

    À contaminação da água do mar.

    À lenta morte dos rios.

    Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.



    A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

    Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

    Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

    Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

    Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

    E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.



    A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

    Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

    A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


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    • 4 min
    #15 O CAMINHO DA VIDA de CHARLES CHAPLIN

    #15 O CAMINHO DA VIDA de CHARLES CHAPLIN

    O Caminho da Vida

    O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos.
    A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e morticínios.
    Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria.
    Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos (precisamos) em demasia e sentimos bem pouco.
    Mais (mas) do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
    Charles Chaplin , O Grande Ditador (1940).
    Nota: Trecho do discurso final do filme de Charles Chaplin "O Grande Ditador" (1940).

    #guerra #liberdade #crueldade #velocidade #humanidade 

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    • 1 min
    #14 VOZES-MULHERES de CONCEI

    #14 VOZES-MULHERES de CONCEI

    Vozes-Mulheres

    Conceição Evaristo

    A voz de minha bisavó
    ecoou criança
    nos porões do navio.
    Ecoou lamentos
    de uma infância perdida.

    A voz de minha avó
    ecoou obediência
    aos brancos-donos de tudo.

    A voz de minha mãe
    ecoou baixinho revolta
    no fundo das cozinhas alheias
    debaixo das trouxas
    roupagens sujas dos brancos
    pelo caminho empoeirado
    rumo à favela

    A minha voz ainda
    ecoa versos perplexos
    com rimas de sangue
            e
            fome.

    A voz de minha filha
    recolhe todas as nossas vozes
    recolhe em si
    as vozes mudas caladas
    engasgadas nas gargantas.

    A voz de minha filha
    recolhe em si
    a fala e o ato.
    O ontem – o hoje – o agora.
    Na voz de minha filha
    se fará ouvir a ressonância
    O eco da vida-liberdade.
     
    (In: Poemas de recordação e outros movimentos, 3.ed., p. 24-25)


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    • 1 min
    #13 SOCORRO! ALGUÉM ME DÊ UM CORAÇÃO de ALICE RUIZ

    #13 SOCORRO! ALGUÉM ME DÊ UM CORAÇÃO de ALICE RUIZ

    SOCORRO! ALGUÉM ME DÊ UM CORAÇÃO de ALICE RUIZ 

    Socorro! eu não estou sentindo nada
    nem medo, nem calor, nem fogo
    não vai dar mais pra chorar
    nem pra rir

    Socorro! alguma alma, mesmo que penada
    me empreste suas penas
    já não sinto amor nem dor
    já não sinto nada

    Socorro! alguém me dê um coração
    que esse já não bate nem apanha
    por favor, uma emoção pequena
    qualquer coisa que se sinta

    tem tantos sentimentos
    deve ter algum que sirva

    Socorro! alguma rua que me dê sentido
    em qualquer cruzamento,
    acostamento, encruzilhada,
    Socorro! eu já não sinto nada


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    • 58 sec
    #12 ASSIM EU VEJO A VIDA de CORA CORALINA

    #12 ASSIM EU VEJO A VIDA de CORA CORALINA

    Assim Eu Vejo a Vida

    A vida tem duas faces:
    Positiva e negativa
    O passado foi duro
    mas deixou o seu legado
    Saber viver é a grande sabedoria
    Que eu possa dignificar
    Minha condição de mulher,
    Aceitar suas limitações
    E me fazer pedra de segurança
    dos valores que vão desmoronando.
    Nasci em tempos rudes
    Aceitei contradições
    lutas e pedras
    como lições de vida
    e delas me sirvo
    Aprendi a viver.

    Cora Coralina Folha de São Paulo, 04 jul. 2001.


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    • 51 sec
    #10 A MORTE DEVAGAR de MARTHA MEDEIROS

    #10 A MORTE DEVAGAR de MARTHA MEDEIROS

    Declamação do poema A MORTE DEVAGAR de Martha Medeiros, na voz de Roger Vasconcelos. 

    Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições. 

    Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.

    Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.

    Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos. 

    Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

    Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo. 

    Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.

    Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população. 

    Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. 

    Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.




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    • 3 min

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