31 min

No umbigo da noite (com Flavia Cera e Eliane Dias‪)‬ Cidades lacanianas

    • Mental Health

(conversa a partir do conto "Na vastidão, o céu da noite" de Itamar Vieira Junior - leia aqui - imagem do episódio de Flavio Pessoa) 

Em toda história que se conta, há silêncio. Nem todo o vivido pode passar para o dizer. Às vezes, o que se experimenta é por demais insuportável e banido. Outras vezes, será esquecido apenas por não ter cabimento. A vida é assim: se escreve, também, pelo não-dito.

Não-ditos nunca são apenas feitos de vazio. São detalhes enigmáticos: um pequeno gesto de mão perdido no ar, um sorriso quase triste, o som de uma bofetada do outro lado da porta, um olhar de cumplicidade.

Uma análise tem relação especial com esses detalhes, pois, pontos cegos das histórias que se conta, valem muito ao conter tudo o que ainda restou por dizer. Guardam de modo perturbador o que poderia ter sido e não foi, localizando o improvável e o imprevisto.

Freud orientou o analista a buscar esses elementos por sua estranheza, situando-os, em uma metáfora célebre, como o umbigo do relato, de um sonho, por exemplo. Tal como um umbigo, são rasuras, cicatrizes ou dobras, pontos por onde a narrativa penetra no desconhecido. Lacan preferiu designar esses estranhos pontos cegos com apenas uma letra, seu objeto “a”. É a estranha opacidade do silêncio tomada como objeto.

Os objetos “a” serão os protagonistas de uma análise. Por serem presenças indeterminadas, funcionam como portas para outros passados, prenhes de novos futuros. Através deles, surgem memórias que nem se imaginava existir.

Como a matéria prima para a reescrita do futuro é esse passado, ocorre de esses dizeres dos não-ditos se acumularem, fazendo pressão. Nenhum problema. É exatamente esse processo que força uma nova arrumação da casa.

Na falta de arquivo, porém, fica difícil fazer o silêncio falar. É o que vivem os que vem de gerações de silenciados. Quando só restam essas pequenas coisas, elas se acumulam em seu silêncio constituindo toda uma área obscura que ganha os poderes do breu da noite. Como os silêncios não são puros vazios, mas cheios de vida não dita, atraem para si mais e mais experiências de silêncio e silenciamento, agindo quase como os buracos negros dos astrônomos. O buraco negro de uma história tende a atrair para si o que houver em volta e a tudo levar a lugar nenhum. No entanto, ainda assim é possível, em vez de, nele, nos perdemos de nós, tomá-lo como portas que se abrem a outros espaços de vida, outras histórias. Basta ter a chave.

É o que ensina o conto Na vastidão da noite, o céu estrelado de Itamar Vieira Júnior. A partir do trabalho de Flávia Cera em torno desse conto, convidei a autora e Eliane Dias para conversar sobre realidade histórica e fabulação crítica, o objeto “a” como buraco negro, literatura e psicanálise, ou ainda sobre o silenciamento entre denegação e foraclusão, entre outras tantas coisas.

No conto de Itamar, o nome da chave é Bárbara, tataravó escravizada da protagonista Rita. A violência do silenciamento parece sentenciar que nada restaria de sua ancestral, mas pequenos elementos, entre romance familiar e realidade histórica vão compondo uma construção sobre o que teria sido Bárbara.

Ao mesmo tempo, essa montagem é orientada por aquilo que na vida de Rita repercute quase que intuitivamente sua ancestral compondo um amálgama vivo entre passado, presente e futuro. Rita nos lança ao mesmo tempo na investigação dos buracos negros do universo e os de sua história e aprendemos com ela, não apenas que o futuro não é possível sem um tanto de passado, mas que, mesmo na falta de arquivo, pode-se confeccionar a gambiarra pessoal que sirva a nos dar a certeza de que a vida sempre pode ser outra do que terá sido  (Marcus André Vieira)

(conversa a partir do conto "Na vastidão, o céu da noite" de Itamar Vieira Junior - leia aqui - imagem do episódio de Flavio Pessoa) 

Em toda história que se conta, há silêncio. Nem todo o vivido pode passar para o dizer. Às vezes, o que se experimenta é por demais insuportável e banido. Outras vezes, será esquecido apenas por não ter cabimento. A vida é assim: se escreve, também, pelo não-dito.

Não-ditos nunca são apenas feitos de vazio. São detalhes enigmáticos: um pequeno gesto de mão perdido no ar, um sorriso quase triste, o som de uma bofetada do outro lado da porta, um olhar de cumplicidade.

Uma análise tem relação especial com esses detalhes, pois, pontos cegos das histórias que se conta, valem muito ao conter tudo o que ainda restou por dizer. Guardam de modo perturbador o que poderia ter sido e não foi, localizando o improvável e o imprevisto.

Freud orientou o analista a buscar esses elementos por sua estranheza, situando-os, em uma metáfora célebre, como o umbigo do relato, de um sonho, por exemplo. Tal como um umbigo, são rasuras, cicatrizes ou dobras, pontos por onde a narrativa penetra no desconhecido. Lacan preferiu designar esses estranhos pontos cegos com apenas uma letra, seu objeto “a”. É a estranha opacidade do silêncio tomada como objeto.

Os objetos “a” serão os protagonistas de uma análise. Por serem presenças indeterminadas, funcionam como portas para outros passados, prenhes de novos futuros. Através deles, surgem memórias que nem se imaginava existir.

Como a matéria prima para a reescrita do futuro é esse passado, ocorre de esses dizeres dos não-ditos se acumularem, fazendo pressão. Nenhum problema. É exatamente esse processo que força uma nova arrumação da casa.

Na falta de arquivo, porém, fica difícil fazer o silêncio falar. É o que vivem os que vem de gerações de silenciados. Quando só restam essas pequenas coisas, elas se acumulam em seu silêncio constituindo toda uma área obscura que ganha os poderes do breu da noite. Como os silêncios não são puros vazios, mas cheios de vida não dita, atraem para si mais e mais experiências de silêncio e silenciamento, agindo quase como os buracos negros dos astrônomos. O buraco negro de uma história tende a atrair para si o que houver em volta e a tudo levar a lugar nenhum. No entanto, ainda assim é possível, em vez de, nele, nos perdemos de nós, tomá-lo como portas que se abrem a outros espaços de vida, outras histórias. Basta ter a chave.

É o que ensina o conto Na vastidão da noite, o céu estrelado de Itamar Vieira Júnior. A partir do trabalho de Flávia Cera em torno desse conto, convidei a autora e Eliane Dias para conversar sobre realidade histórica e fabulação crítica, o objeto “a” como buraco negro, literatura e psicanálise, ou ainda sobre o silenciamento entre denegação e foraclusão, entre outras tantas coisas.

No conto de Itamar, o nome da chave é Bárbara, tataravó escravizada da protagonista Rita. A violência do silenciamento parece sentenciar que nada restaria de sua ancestral, mas pequenos elementos, entre romance familiar e realidade histórica vão compondo uma construção sobre o que teria sido Bárbara.

Ao mesmo tempo, essa montagem é orientada por aquilo que na vida de Rita repercute quase que intuitivamente sua ancestral compondo um amálgama vivo entre passado, presente e futuro. Rita nos lança ao mesmo tempo na investigação dos buracos negros do universo e os de sua história e aprendemos com ela, não apenas que o futuro não é possível sem um tanto de passado, mas que, mesmo na falta de arquivo, pode-se confeccionar a gambiarra pessoal que sirva a nos dar a certeza de que a vida sempre pode ser outra do que terá sido  (Marcus André Vieira)

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