Dois Dedos de Poesia João Pedro Castro
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- Arts
um dedo de poesia aqui, outro de poema acolá
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Episódio 7: Do Desejo I - Hilda Hilst(Part. Julia Correa)
DO DESEJO - I Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada. (Hilda Hilst) -
Episódio 6: Soneto de Fidelidade - Vinicius de Moraes(Part. Maria Clara Farias)
Vinicius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de Moraes, foi um poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro. Poeta essencialmente lírico, o que lhe renderia o apelido "poetinha", que lhe teria atribuído Tom Jobim, notabilizou-se pelos seus sonetos.
SONETO DE FIDELIDADE
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure. -
Episódio 5: Dez Chamamentos ao Amigo - Hilda Hilst(Part. Giulia Ferreira)
Hilda Hilst foi uma poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira. Seu trabalho aborda temas como misticismo, insanidade, erotismo e libertação sexual feminina. "Dez chamamentos ao amigo” é uma série de poemas do livro “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, publicado em 1974.
DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO
VI
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste? -
Episódio 4: Agradecimento - Wislawa Szymborska(Part. Elisa França)
Wislawa Szymborska foi uma poeta polonesa, nascida na década de 20 e que ganhou o Prêmio Nobel de 1996. Agradecimento é um dos seus princiapais poemas publicado em seu único livro traduzido para o português:Poemas.
AGRADECIMENTO
Devo muito
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
“Não lhes devo nada” –
diria o amor
sobre essa questão aberta. -
Episódio 3: Ismália - Alphonsus de Guimaraens
Alphonsus de Guimaraens, mineiro, de Ouro Preto, nasceu em 1870. Experienciou a morte - tema que permearia sua obra cheia de misticismo - ainda jovem, quando perdeu sua prima(e noiva) Constança(esta, que por sua vez era filha de Bernardo Guimarães - sim, aquele). Se formou em direito nas Arcadas de São Francisco e viveu o resto de sua vida em Mariana, onde, apesar de ser casado e de ter filhos, era chamado de "O Solitário de Mariana" graças ao seu comportamento.
ISMÁLIA
Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar
Estava longe do céu
Estava longe do mar
E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar. -
Episódio 2: Poema em Linha Reta - Álvaro de Campos(Fernando Pessoa)
Álvaro de Campos é um dos heterónimos mais conhecidos, verdadeiro alter ego do escritor português Fernando Pessoa, que fez uma biografia para cada uma das suas personalidades literárias, a que chamou heterónimos.
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.