Para além da orelha ana paula dacota
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Para além da orelha - um podcast de leituras de crônicas, poemas e reflexões.
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Testamento - Trilha sonora do booktrailler "A mão é uma pista de voo"
"Testamento" é de autoria de Lula do Prado. Na interpretação dele, os poemas do livro "A mão é uma pista de voo" soam como um legado positivo desse momento ruim que atravessamos. O título do poema "Quando fizer sol me encontre em lá" foi o mote que o inspirou, por fazer referência a três notas musicais: Sol, Lá e Mi (me). A música se desenvolve no tom de Mi maior, mas, para a introdução iniciada em Lá, ele criou uma frase musical que é a reprodução do título desse poema, tocando as notas referências (Sol, Mi e Lá) no momento em que elas são lidas na frase escrita.
Curta essa bela composição! -
Meu jardim
meu jardim
se queres adentrar
meu jardim
converta-se em criança
ajoelhe-se na terra
deite-se no chão
olhe o mundo
de baixo para cima
rasteje junto às formigas
observe-as entrando
no subterrâneo
onde a vida acontece
depois vem cheirar as flores
e lamber o orvalho
que a noite deixou nas pétalas
(Ana Paula Dacota - no prelo da antologia "Não nos afastemos, escrevamos" ) -
Moça que sabe de si - na voz de Adriana Versiani dos Anjos
é mulher arredia
com o agravante
de falar com os olhos
seus silêncios
são mal interpretados
e quando ri
é sem medida
é mulher intensa
feliz só por ser humana
problemática assumida
singularidade aviltante
por ser assim e assado
assusta
o atrevido que se arrisca
acaba perdendo os botões
da camisa
Autora: Ana Paula Dacota
(do livro: Perfume atrás da orelha, Edições Alma de Gato, Scriptum, 2019) -
Ana Cristina Cesar - Quase
quase
uma tarde cremosa.
coração, bates; como quem está amoroso ou precisando
escrutinar páginas virgens.
há um outono lânguido tiquetaqueando por entre nuvens de lentidão;
há um casal de andorinhas se buscando entre antenas e para-raios;
há um homembinóculo de camisa azul, no alto de um
terraço, violentando janela por janela;
vozes surrealistas de crianças levantam voo por detrás de um
varal; um urubu solitário espirala, talvez à cata de
carniça entre o crepúsculo.
os sonhos que rabiscam velhos mares não são mais daquela finidade antiga; e ser, nesta meia-hora,
é descascar sem muita pressa, é interpretar nuances de magia.
que mistério engravida esta cidade?
ana cristina
30.3.69
17:30
Anos 1960-70
(do livro: antigos e soltos - 2008) -
Clarice Lispector - É para lá que eu vou
Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto – é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia – é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou – é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. É para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois – depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.
— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.