Boletim Parnaso Anderson C. Sandes
-
- Arts
Poeta, cronista, ensaísta. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.
-
Arte e utilitarismo | Boletim Parnaso #01
No programa de hoje, Anderson C. Sandes discute os fins utilitários da arte e suas possibilidades. Afinal, a arte é útil ou não? Assine o Boletim Parnaso: https://andersonsandes.com.br/boletim
-
O pequeno gigante | Poema
Pequeno gigante, Anderson C. Sandes
O homenzinho que ora
simula um colosso
faz sua pose desajeitada
Cheio de vazio na garganta,
fala de modo raso
de tudo que é profundo
Alguém elogiou o personagem — o colosso
e o homenzinho agradeceu
alardeando modéstia
Não quer subir
nos ombros dos gigantes,
quere-os nos seus
Vai à noite dormir sem fôlego,
suspirando de amores
pelos livros que não leu
Com um cantarolar anasalado
daquela bela canção
que nunca ouviu
Às pressas faz uma prece:
— que me perdoe o perfeccionismo,
amanhã tento melhorar
Acaba sonhando consigo mesmo,
em preto e branco,
pois é o que alcança a imaginação
do grande homenzinho,
que de comprido
só a lista do que não cumpriu. -
O velho Emílio | Poema
O velho Emílio
Anderson C. Sandes
In memoriam de Emílio Cordeiro de Lima
Jaz a lua minguante
Sobre a serena garoa
Que pega fúria
Horas depois da viração
Emílio levanta clamando por Maria
— Ali outra goteira, traz o balde
Sinto o cheiro de querosene
Queimando no candeeiro
Oh! que agradável, ah!
Dane-se a minguada lua
A miserável e tímida
Obscurecida agora pelo toró
Que faz pingar o telhado
O velho raspa o fumo co’a
Navalha, repousa-o na seda
Fita um lugar p’ra cuspir
Antes do trago
Em julho as pernas doem mais
A coluna entreva
Mas deixa estar
Balança a garrafa
Em busca de café
— Maria, Maria
Alumia a rede
Onde finge dormir o neto
Que a tudo observa
A meia luz e meio olhar
Escondendo o sorriso
O velho, por sua vez
Não disfarça a graça
— Deixa eu deitar aí
— Venha, vô
Digo não mais ocultando o riso
— Tenha medo não
Diz, referindo-se às trevas
Entrego a rede como oferenda
E a passos largos
Vou ao pote de barro buscar água
Um trovão bambeai-me as pernas
E penso em voltar
— Tenha medo não
Brada a voz pelas sombras
Pura carícia
Levo o caneco direto
À boca, sem despejar em outro
Ninguém está vendo
Volto tateando, veloz
Destreza de frouxos
— Tenha medo não
Três ou quatro baldes
De goteira engrossam
A noturna sinfonia
Perfeita para o repouso
Vem Maria do leito
Perplexa e supersticiosa:
— Ouviram? A rasga mortalha
— Misericórdia
O silêncio reinou
(...)
Ainda sinto o cheiro do querosene
Do candeeiro de vovô
Aquela rasga mortalha
Vez ou outra passa por cima
De meu telhado
Aprendi a amar seu canto
Recorda-me tudo
Cada luar
Cada pingo
Cada cuspida antes do trago
O velho pote d'água
O caneco amassado
Tudo permanece aqui dentro
Por causa do velho
Emílio
Que descansa em paz