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"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações. (...)"
Alberto Caeiro


Podcast de segunda a sexta, sempre às 02h, com leitura de poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos.

O Guardador de Rebanhos Fernando Pessoa

    • Kunst

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações. (...)"
Alberto Caeiro


Podcast de segunda a sexta, sempre às 02h, com leitura de poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos.

    O Guardador de Rebanhos V - Há metafísica bastante em não pensar em nada - Alberto Caeiro

    O Guardador de Rebanhos V - Há metafísica bastante em não pensar em nada - Alberto Caeiro

    V

    Há metafísica bastante em não pensar em nada.

    O que penso eu do Mundo?

    Sei lá o que penso do Mundo!

    Se eu adoecesse pensaria nisso.

    Que ideia tenho eu das coisas?

    Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

    Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

    E sobre a criação do Mundo?

    Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

    E não pensar. É correr as cortinas

    Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

    O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!

    O único mistério é haver quem pense no mistério.

    Quem está ao sol e fecha os olhos,

    Começa a não saber o que é o Sol

    E a pensar muitas coisas cheias de calor.

    Mas abre os olhos e vê o Sol,

    E já não pode pensar em nada,

    Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos

    De todos os filósofos e de todos os poetas.

    A luz do Sol não sabe o que faz

    E por isso não erra e é comum e boa.

    Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores

    A de serem verdes e copadas e de terem ramos

    E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

    A nós, que não sabemos dar por elas.

    Mas que melhor metafísica que a delas,

    Que é a de não saber para que vivem

    Nem saber que o não sabem?

    «Constituição íntima das coisas»...

    «Sentido íntimo do Universo»...

    Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

    É incrível que se possa pensar em coisas dessas.

    É como pensar em razões e fins

    Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

    Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

    Pensar no sentido íntimo das coisas

    É acrescentado, como pensar na saúde

    Ou levar um copo à água das fontes.

    O único sentido íntimo das coisas

    É elas não terem sentido íntimo nenhum.

    Não acredito em Deus porque nunca o vi.

    Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

    Sem dúvida que viria falar comigo

    E entraria pela minha porta dentro

    Dizendo-me, Aqui estou!

    (Isto é talvez ridículo aos ouvidos

    De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

    Não compreende quem fala delas

    Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

    Mas se Deus é as flores e as árvores

    E os montes e sol e o luar,

    Então acredito nele,

    Então acredito nele a toda a hora,

    E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

    E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

    Mas se Deus é as árvores e as flores

    E os montes e o luar e o sol,

    Para que lhe chamo eu Deus?

    Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

    Porque, se ele se fez, para eu o ver,

    Sol e luar e flores e árvores e montes,

    Se ele me aparece como sendo árvores e montes

    E luar e sol e flores,

    É que ele quer que eu o conheça

    Como árvores e montes e flores e luar e sol.

    E por isso eu obedeço-lhe,

    (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

    Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

    Como quem abre os olhos e vê,

    E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

    E amo-o sem pensar nele,

    E penso-o vendo e ouvindo,

    E ando com ele a toda a hora.

    s.d.

    - 28.“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).


    “O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.

    • 3 Min.
    O Guardador de Rebanhos IV - Esta tarde a trovoada caiu - Alberto Caeiro

    O Guardador de Rebanhos IV - Esta tarde a trovoada caiu - Alberto Caeiro

    IV

    Esta tarde a trovoada caiu

    Pelas encostas do céu abaixo

    Como um pedregulho enorme...

    Como alguém que duma janela alta

    Sacode uma toalha de mesa,

    E as migalhas, por caírem todas juntas,

    Fazem algum barulho ao cair,

    A chuva chovia do céu

    E enegreceu os caminhos...

    Quando os relâmpagos sacudiam o ar

    E abanavam o espaço

    Como uma grande cabeça que diz que não,

    Não sei porquê — eu não tinha medo —

    Pus-me a rezar a Santa Bárbara

    Como se eu fosse a velha tia de alguém...

    Ah! é que rezando a Santa Bárbara

    Eu sentia-me ainda mais simples

    Do que julgo que sou...

    Sentia-me familiar e caseiro

    E tendo passado a vida

    Tranquilamente, como o muro do quintal;

    Tendo ideias e sentimentos por os ter

    Como uma flor tem perfume e cor...

    Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...

    Ah, poder crer em Santa Bárbara!

    (Quem crê que há Santa Bárbara,

    Julgará que ela é gente visível

    Ou que julgará dela?)

    (Que artifício! Que sabem

    As flores, as árvores, os rebanhos,

    De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,

    Se pensasse, nunca podia

    Construir santos nem anjos...

    Poderia julgar que o Sol

    É Deus, e que a trovoada

    É uma quantidade de gente

    Zangada por cima de nós…

    Ah, como os mais simples dos homens

    São doentes e confusos e estúpidos

    Ao pé da clara simplicidade

    E saúde em existir

    Das árvores e das plantas!)

    E eu, pensando em tudo isto,

    Fiquei outra vez menos feliz...

    Fiquei sombrio e adoecido e soturno

    Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça

    E nem sequer de noite chega...

    s.d.

    - 26.“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

    • 1 Min.
    O Guardador de Rebanhos III - Ao entardecer - Alberto Caeiro

    O Guardador de Rebanhos III - Ao entardecer - Alberto Caeiro

    III

    Ao entardecer, debruçado pela janela,

    E sabendo de soslaio que há campos em frente.

    Leio até me arderem os olhos

    O livro de Cesário Verde.

    Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

    Que andava preso em liberdade pela cidade.

    Mas o modo como olhava para as casas,

    E o modo como reparava nas ruas,

    E a maneira como dava pelas coisas,

    É o de quem olha para árvores,

    E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

    E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

    Por isso ele tinha aquela grande tristeza

    Que ele nunca disse bem que tinha,

    Mas andava na cidade como quem anda no campo

    E triste como esmagar flores em livros

    E pôr plantas em jarros...

    s.d.

    - 25.“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

    • 1 Min.
    O Guardador de Rebanhos II - O meu olhar - Alberto Caeiro

    O Guardador de Rebanhos II - O meu olhar - Alberto Caeiro

    II

    O meu olhar é nítido como um girassol.

    Tenho o costume de andar pelas estradas

    Olhando para a direita e para a esquerda,

    E de vez em quando olhando para trás...

    E o que vejo a cada momento

    É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

    E eu sei dar por isso muito bem...

    Sei ter o pasmo essencial

    Que tem uma criança se, ao nascer,

    Reparasse que nascera deveras...

    Sinto-me nascido a cada momento

    Para a eterna novidade do Mundo...

    Creio no Mundo como num malmequer,

    Porque o vejo. Mas não penso nele

    Porque pensar é não compreender...

    O Mundo não se fez para pensarmos nele

    (Pensar é estar doente dos olhos)

    Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

    Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

    Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

    Mas porque a amo, e amo-a por isso,

    Porque quem ama nunca sabe o que ama

    Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

    Amar é a eterna inocência,

    E a única inocência é não pensar...

    8-3-1914

    - 24.“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

    • 1 Min.
    O Guardador de Rebanhos I - Eu nunca guardei rebanhos - Alberto Caeiro

    O Guardador de Rebanhos I - Eu nunca guardei rebanhos - Alberto Caeiro

    I

    Eu nunca guardei rebanhos,

    Mas é como se os guardasse.

    Minha alma é como um pastor,

    Conhece o vento e o sol

    E anda pela mão das Estacões

    A seguir e a olhar.

    Toda a paz da Natureza sem gente

    Vem sentar-se a meu lado.

    Mas eu fico triste como um pôr do Sol

    Para a nossa imaginação,

    Quando esfria no fundo da planície

    E se sente a noite entrada

    Como uma borboleta pela janela.

    Mas a minha tristeza é sossego

    Porque é natural e justa

    E é o que deve estar na alma

    Quando já pensa que existe

    E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

    Com um ruído de chocalhos

    Para além da curva da estrada,

    Os meus pensamentos são contentes.

    Só tenho pena de saber que eles são contentes,

    Porque, se o não soubesse,

    Em vez de serem contentes e tristes,

    Seriam alegres e contentes.

    Pensar incomoda como andar à chuva

    Quando o vento cresce e parece que chove mais.

    Não tenho ambições nem desejos.

    Ser poeta não é uma ambição minha.

    É a minha maneira de estar sozinho.

    E se desejo às vezes,

    Por imaginar, ser cordeirinho

    (Ou ser o rebanho todo

    Para andar espalhado por toda a encosta

    A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),

    É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol

    Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

    E corre um silêncio pela erva fora.

    Quando me sento a escrever versos

    Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

    Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

    Sinto um cajado nas mãos

    E vejo um recorte de mim

    No cimo dum outeiro,

    Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,

    Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,

    E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

    E quer fingir que compreende.

    Saúdo todos os que me lerem,

    Tirando-lhes o chapéu largo

    Quando me vêem à minha porta

    Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

    Saúdo-os e desejo-lhes sol

    E chuva, quando a chuva é precisa,

    E que as suas casas tenham

    Ao pé duma janela aberta

    Uma cadeira predilecta

    Onde se sentem, lendo os meus versos.

    E ao lerem os meus versos pensem

    Que sou qualquer coisa natural —

    Por exemplo, a árvore antiga

    À sombra da qual quando crianças

    Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

    E limpavam o suor da testa quente

    Com a manga do bibe riscado.

    8-3-1914

    - 21.“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).


    “O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.

    • 2 Min.

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