Depois da repressão pós-eleitoral, ciclone Chido deixa “moçambicanos de rastos”

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“Falta tudo em Mecúfi”, o ponto de entrada do ciclone Chido em Moçambique, onde o vento chegou a soprar 260 quilómetros por hora no domingo. Neste distrito da província de Cabo Delgado, falta água, alimentos, telhados, roupa, tudo, testemunha Hélia Seda, gestora de projectos da ONG Helpo em Moçambique. Este é o mais recente ciclone a fustigar um dos países mais severamente afectados pelas alterações climáticas no mundo e vem juntar-se à violência que atinge o norte do país desde 2017 e à repressão dos protestos pós-eleitorais nos últimos dois meses. “Os moçambicanos estão de rastos e abandonados à própria sorte”, desabafa Hélia Seda.

Até esta quarta-feira, 18 de Dezembro, o Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres registava que 45 pessoas morreram na sequência da passagem do ciclone tropical Chido nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula, no norte de Moçambique. Pelo menos 493 pessoas ficaram feridas, uma está desaparecida e um total de 35.689 famílias foram afectadas, o correspondente a 181.554 pessoas.

Porém, o número de vítimas mortais poderá ser bem superior, admite Hélia Seda, gestora do projecto da ONG Helpo de fortalecimento dos serviços de saúde e nutrição em Mecúfi e Ancuabe. A responsável contou à RFI que só em Mecúfi haveria, pelo menos, “50 mortos, incluindo crianças e mulheres em idade fértil”. É que Mecúfi parece ser o distrito mais afectado por ter sido o ponto de entrada do ciclone Chido em Moçambique. “Cem por cento da população de Mecúfi está afectada, em diferentes magnitudes, mas 100% está afectada”, precisa a responsável, sublinhando que no distrito vivem 76.000 pessoas.

“Mecúfi foi o ponto de entrada do ciclone Chido para a província de Cabo Delgado. Principalmente as habitações mais precárias e construídas a partir de material local encontram-se 100% destruídas; as infra-estruturas governamentais e privadas construídas através de material convencional encontram-se completamente sem tecto, com excepção de duas escolas que têm cinco salas intactas e também uma escola que não está completamente destruída. Em Mecúfi neste momento falta tudo, mas as ajudas alimentares já começaram a chegar”, conta Hélia Seda, recordando que a Helpo já entregou kits de higiene e vai continuar a entregar ajuda de primeira necessidade.

Hélia Seda explicou que “72 horas passam após Mecúfi ser atingido por este ciclone, os sítios que tinham sido mapeados para servirem de campos de acomodação encontram-se igualmente devastados”, o que leva a que “quase toda a população” continue nas suas zonas de origem, “expostas ao sol, ao frio” e, eventualmente, às chuvas porque as casas ficaram destruídas e sem tecto.

É urgente que as pessoas possam estar abrigadas, reconhece Carlos Almeida, coordenador da Helpo em Moçambique, sublinhando que em Mecúfi, por exemplo, “as casas das pessoas foram praticamente varridas na totalidade” e que em Metuge e Ancuabe a situação também é grave. Por isso, uma das prioridades é conseguirem toldos para proteger as pessoas, mas “a prioridade das prioridades” é distribuir alimentos, algo que a ONG começou a fazer esta quarta-feira.

A organização não-governamental para o desenvolvimento, presente em Moçambique desde 2008, lançou uma campanha de recolha de fundos, intitulada "Iniciativa Emergência Ciclone Chido", para ajudar imediatamente as pessoas e que está acessível na sua página e nas suas redes sociais.

Outra preocupação é o surgimento de surtos de cólera. “Há sempre surtos de cólera em Moçambique nestas situações pós-ciclone. Aconteceu isso no ciclone Idai e aconteceu no ciclone Kenneth. As pessoas não têm acesso a água potável, não conseguem beber água em condições, não conseguem manter a higiene e a cólera pode aparecer. Ao mesmo tempo, as infraestruturas de saúde, pelo facto de também estarem destruídas, umas totalmente outras parcialmente, faz com que os cuidados de saúde não sejam dignos para estas pessoas. Por isso temos aqui um efeito de bola de neve em que todos estes problemas vão-se acumulando e vai ser um Dezembro muito complicado para as populações de Cabo Delgado e do norte da província de Nampula, que também foi muito afectada. Niassa também sofreu alguma coisa, mas por ser muito no interior, a passagem do ciclone Chido teve um efeito menos devastador”, explica Carlos Almeida.

O ciclone é mais um episódio que põe à prova a resiliência dos moçambicanos que, no norte do país, sofrem os ataques de uma insurgência armada desde 2017 e, nos últimos dois meses, enfrentam, por todo o país, a repressão policial aos protestos pós-eleitorais, em que morreram, pelo menos 130 pessoas. “Os moçambicanos estão de rastos e abandonados à própria sorte”, desabafa Hélia Seda.

“São catástrofes, são situações políticas, é a própria instabilidade da própria província, são situações climáticas e tudo isso influencia directamente a vida dos moçambicanos. Todos somos chamados a intervir para que aliviemos a situação da população no geral”, comenta a responsável.

De facto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) reconheceu que o ciclone Chido agravou as necessidades das populações no norte de Moçambique, deslocadas pelo terrorismo, e que 190 mil pessoas precisam de “apoio urgente”. No fundo, Cabo Delgado enfrenta “um triplo problema”, acrescenta Carlos Almeida: o ciclone, o terrorismo e o “conturbado período pós-eleitoral”. A tudo isto soma-se um quarto factor que pode levar a que Moçambique seja esquecido nas turbulências mundiais actuais: a diminuição da ajuda internacional.

“Com todos estes ingredientes, com o facto de as agências das Nações Unidas estarem a receber menos financiamento para este problema em Moçambique, é que esta crise de terrorismo e dos deslocados pode vir a ser uma crise esquecida porque constantemente a demanda de problemas no resto do mundo, como a questão da Ucrânia, a questão do Médio Oriente, da Palestina e agora da Síria, são tudo problemas que tiram o foco o financiamento das agências das Nações Unidas e também das organizações não governamentais, como é o caso da Helpo, que é uma organização não governamental internacional. No entanto, por estarmos a trabalhar em Moçambique desde 2008, temos já uma implementação local, mas também nos deparamos com esta questão dos fundos que são sempre menores do que as necessidades”, explica.

De acordo com as autoridades moçambicanas, a passagem do ciclone Chido causou ainda a destruição total e parcial de 36.207 casas, afectando também 48 unidades hospitalares, 13 casas de culto, 186 postes de energia, 9 sistemas de água e 171 embarcações. O ciclone tropical, que devastou o arquipélago francês Mayotte, entrou no domingo pelo distrito de Mecúfi, na província de Cabo Delgado, com ventos que rondaram os 260 quilómetros por hora.

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